Caro padre, eu vim até aqui fazer uma confissão.
Deus me matou.
Matou-me ao me dar o dom da misericórdia.
Acreditei que esse dom fazia de mim Sua filha.
Perdoei aos que mataram meus pais
Tive pena de suas almas e rezei por uma boa passagem
Segurando o terço vi minha irmã caçula prostituir-se
Que escolha teve ela? Sem casa, sem comida.
Rezei para que a perdoasse também, como o fiz.
Segurando o terço e sussurrando para mim
os ensinamentos que me deste, abri mão do amor pelos homens.
Aos poucos queimava meu corpo,
aos poucos aprendi a ser feliz pelo amor dos outros e amar apenas a Ele.
E como amei.
Amei-O quando tirou minha última família, minha irmã contaminada,
Amei-O quando gritei para os céus que tipo de plano tinha para mim
E porque havia de ser daquele jeito. Será que não estava feliz comigo?
Decidi me dedicar aos outros.
Descobri o ódio dos outros e rezei por eles.
Descobri a disfarçatez dos Homens e rezei por eles.
Orei por todos. Os infelizes pecadores, caídos na tentação da carne
e da cobiça.
Foi quando descobri que sentia dor.
Não me doía a maldade do mundo, não me doía nem mesmo
As marcas da fome e os calos nos pés.
Doía-me ser eu.
Doía-me não ser os outros.
Doía-me o peito por não ter tido a dor humana.
Doía-me ter perdoado os que quis odiar,
ter sido benevolente com aqueles que mereciam a força
que uma dia possuíram minhas palavras e minhas mãos.
Me doía tanto que fui morrendo.
Meu espírito, que tanto fiz crescer por Ele,
Perdeu-se da carne, e tornei-me imaculada,
Tornei-me uma grande alma sem corpo
Uma encarnação do bem e da resignação
Morri ao segurar o terço e não ter visto
que as farpas deste se aprofundavam em minhas mãos.
Morri. E a culpa é Dele. E vim para acusá-lo de querer matar tantos outros.
O meu pecado, padre?
O meu pecado é ser cristã.
P'ra variar, o ser humano não se implica.
ResponderExcluirBeijo, Flor.
Bela historinha.
ResponderExcluirEsse assunto sempre me interessa, mas é difícil achar com quem se pode conversar, sem que este se sinta desrespeitado.